
Categoria: Artigos
Data: 10/02/2023
Buscaremos neste artigo apontar o pensamento de Kierkegaard com base em seu livro Temor e Tremor. Ainda que façamos alguns apontamentos filosóficos de seu tempo, não buscaremos aqui apontar as divergências entre elas, ainda que elas sejam percebidas pelo leitor. Focaremos em sua forma de apresentar a importância do homem em construir sua individualidade. Os valores das experiências individuais e da importância das mudanças internas no homem. Um caminho totalmente individual e solitário.
Uma sociedade pragmática e voltada para resultados têm gerado indivíduos vazios e sem personalidades. Preocupados com o resultado não aprendem com o processo, justamente o que buscaremos ver neste artigo. O processo como o grande lugar de transformações individuais e não o resultado em si.
Sobre o autor podemos apontar quatro acontecimentos em sua vida que foram relevantes na construção do seu pensamento: a influência de seu pai; seu noivado; sua polêmica com o jornal O Corsário; e sua polêmica com a Igreja oficial da Dinamarca segundo nos apresenta Jonas Roos em seu livro Dez lições sobre Kierkegaard.
Soren Aabye Kierkegaard nasceu em 5 de maio de 1813, em Copenhague, filho de Michael Pedersen Kierkegaard (1756-1838) e Anne Sorensdatter Kierkegaard, nascida Lund (1768-1834). Michael Kierkegaard havia sido casado anteriormente, e sua primeira esposa, Kirstine Royen, falecera depois de dois anos de casamento, sem ter tido filhos. Anne havia sido empregada da família durante este período. Cerca de um ano depois do falecimento de Kirstine, Michel e Anne se casam, com ela já grávida da primeira filha, Maren Kiestine, que nasce cerca de quatro meses e meio depois do casamento. Essa situação fez com que Michel se sentisse inicialmente obrigado a casar com Anne, mas, com o passar do tempo, uma relação afetuosa se desenvolveu entre o casal, que teve sete filhos, dos quais o último foi Soren. (ROOS, 2021, p. 13) Dentro deste contexto o nosso autor cresce e vem a se tornar o Pai do Existencialismo, como ficou conhecido por dar importância a individualidade em suas peculiaridades.
A humanidade buscou por vários meios criar certezas absolutas para nortear a existência humana a partir de verdades declaradas. O sentido da vida e sua objetividade sendo tratada de forma generalista, eliminando os possíveis pensamentos individuais e até subjetivos, tornando tudo comum e geral. Kierkegaard vai justamente questionar esses conceitos gerais e afirmar que o ser humano precisa encontrar a verdade individual pela qual deva “viver e morrer”. É justamente no contraponto do pensamento hegeliano de um saber objetivo em um conceito geral de seu tempo onde a razão tudo explica. Tal pensamento é para Kierkegaard uma tentativa pagã de ser a palavra final de toda realidade da prática da fé cristã.
O espírito que inicialmente se externava na forma de um campo natural inconsciente poderia alcançar uma efetivação gradual de seu caráter fundamental por meio da consciência em desenvolvimento nos seres humanos. No nível reflexivo, tal pensamento produziria um mundo como produto de um intelecto cuja estrutura subjacente era espelhada em nosso processo de pensar (...) A realidade não seria mais estranha aos seres humanos e o espírito teria uma compreensão e satifatória de si mesmo (MORAES, 2002, p. 113).
Kierkegaard busca construir em seus escritos o caminho da individualidade humana. Mesmo que o homem nasça um indivíduo ele deve produzir a sua própria individualidade.“Uma marca de sua obra é a ideia de que uma pessoa não nasce um indivíduo, mas deve produzir a própria individualidade, deve tornar-se a si mesmo”(ROOS, 2021, p. 10).
A experiência de vida produz a individualidade humana. Com a defesa dos valores gerais de uma comunidade reprimimos os valores individuais com um discurso de proteção da comunidade ou de uma verdade racional universal. Com isso, o amadurecimento individual se perde em uma prática de valores e experiências gerais que não toca o indivíduo em sua essência. Seguimos parâmetros e os defendemos sem nem sequer vivê-los e conquistá-los nas angústias da existência. Onde muitos podem dizer – só sei que é assim.
Kierkegaard busca despertar a importância das experiências individuais que produzem maturidade não em um conjunto de pessoas, mas em cada indivíduo particularmente. É a maravilha da vida de ser uma e única em cada indivíduo. A partir das experiências pessoais encontramos um agir que o torna significativo.
É por isso que o problema que Kierkegaard tem com a cristandade não é um problema com a Igreja ou com a cultura dinamarquesa apenas, mas um problema que atinge o âmago da existência humana, ou seja, como tornar-se si mesmo face a elementos que tentam determinar o si-mesmo a partir de fora. (ROOS, 2021, p. 27)
A sua proposta não é uma obediência a um Deus impositivo, bem como, a um compêndio de doutrinas, mas deve ser uma escolha livre de normas e regras estabelecidas com o tempo. Uma clareza de sua finitude, sua temporalidade, seu corpo, sua história permeada pela ação do Eterno que transcende toda a nossa existência. É o infinito no finito. Não passa por uma escolha derivada de forças externas do convívio humano, mas algo que se move no mais íntimo do ser produzindo escolhas e mudanças radicais em si mesmo.
O ser humano é entendido por Kierkegaard como uma síntese de infinitude e de finitude, do temporal e do eterno, de liberdade e necessidade. Vivemos na finitude e em suas determinações, mas ao mesmo tempo, nutrimos sonhos, esperanças e sentidos da ordem da infinitude. O desespero é exatamente a má relação dessa síntese que nos constitui, e, consequentemente, uma perda de nós mesmos (ROOS, 2021, p. 39).
É justamente nessa relação do finito com o infinito que o ser humano se torna um indivíduo. Suas escolhas são fruto de experiências que transcendem as normas e prazeres que regem o tempo. Uma liberdade de ir além dos que estão limitados pelas “verdades objetivas” de seu tempo.
O autor nos propõe olhar para a história bíblica de Abraão no episódio da solicitação de Deus em sacrificar seu filho. Buscaremos assim, mostrar nesse personagem o herói trágico diferente das normas estabelecidas pela sociedade. E, assim, mostrar que os seres realmente livres são os que em sua individualidade são capazes de tomarem decisões sem influências externas.
2. O HERÓI TRÁGICO
O valor transformador na vida do nosso autor é significativo. Quantas inquietações e dúvidas surgiram diante da história, muitas vezes contada, de um pai que sai para sacrificar seu próprio filho e vive uma forte experiência. A história bíblica de Abraão e Isaac, criou nele um grande desejo de entender os sentimentos e as motivações de Abraão vividos nos três dias de caminhada até ao local do sacrifício.
Deus pôs Abraão à prova e lhe disse: Abraão! Este lhe respondeu: Eis-me aqui! Acrescentou Deus: Toma teu filho, teu único filho, Isaque, a quem amas, e vai-te à terra de Moriá; oferece-o ali em holocausto, sobre um dos montes, que eu te mostrarei. (Gênesis 22.1-2, Bíblia Sagrada)
Kierkegaard aborda em seu livro Temor e Tremor a história de Abraão trazendo a ideia que se a humanidade não fosse permeada por um vínculo sagrado em sua existência o que restaria ao homem seria somente o desespero. A vida seria um mundo em total desespero. O fato de uma continuidade das gerações é tida como uma forma de crescimento em meio a fatos presentes ainda não compreendidos totalmente. Imaginem se na história, tivéssemos que reviver, em cada geração, os erros e absurdos cometidos em um ciclo interminável. Imaginem se a dor, a tristeza, a doença e o sofrimento tivessem um fim em si mesmo. Como seria ainda mais pesada a nossa jornada nesta vida se não aprendêssemos com as gerações anteriores.
É aqui que o autor nos chama a pensar nesse vínculo sagrado que se move entre as gerações produzindo sabedoria e maturidade. A história de Abraão nos traz esse sentimento de ver que somos capazes de ir além da moral por um entendimento sagrado, ou seja, seguimos com a fé onde a razão para. Superamos a dor, a perda e os moldes morais para viver algo além da própria razão humana.
Surge, assim, em nossa história os “Heróis Trágicos”. Admirados por todos ou em grande parte, justamente por suas realizações de coragem motivados pelo que amam, como Kierkegaard frisa: “Porque aquele que se amou a si próprio foi grande pela sua pessoa; quem amou a outrem foi grande dando-se; mas o que amou a Deus foi o maior de todos”. (KIERKEGAARD, 1843, p. 28). Kierkegaard destaca que os homens são lembrados e admirados pelos objetos de suas esperanças, pela importância daquilo pelo que combateram - “um engrandeceu-se na esperança de atingir o possível; um outro das coisas eternas, mas aquele que quis alcançar o impossível foi, de todos, o maior”. (KIERKEGAARD, 1843, p. 29).
Diante de todo o crescimento que a humanidade pode ter das lutas enfrentadas entre homens e entre suas próprias limitações, é colocado que as grandes experiências passam por encarar a Deus. E nisso, Abraão se tornou o maior de todos pelas seguintes nuances: “grande pela energia cuja força é a fraqueza, grande pelo saber cujo segredo é loucura, pela esperança cuja forma é a demência, pelo amor que é ódio a si próprio”. (KIERKEGAARD, 1843, p. 29).
Veremos neste tópico a forma e a importância de um propósito que direcione todas as nossas escolhas. Buscaremos apontar o caminho apresentado pelo autor sobre o Herói trágico, verificado na história em vários momentos, mas aqui, será pela história bíblica de Abraão.
Partimos de um conceito fundamental em Kierkegaard que é a fé. Para ele não precisamos saber exatamente o que fazer, e sim, o que é preciso fazer.
O que eu realmente preciso é ter clareza sobre o que devo fazer e não o que eu preciso saber, a não ser na medida em que o conhecimento deva preceder cada movimento. O que importa é encontrar um propósito, para ver o que realmente é que Deus quer que eu faça; o mais importante é encontrar uma verdade para mim, encontrar a ideia pela qual estou disposto a viver e morrer.(KIERKEGAARD, 1843, p. 12).
O sentido para viver é que dá toda a motivação para seguir um caminho.
Abraão obteve uma promessa de ser uma grande nação e que todas as nações seriam abençoadas por meio de sua família. Mas o tempo foi passando e a cada novo dia parecia tudo mais absurdo e impossível, mas ele creu. Manteve a sua esperança. Confiou mesmo diante do tempo que avançava e, com isso, suas possibilidades de se tornar uma grande nação iam diminuindo, porém, nada disso foi suficiente para pôr fim à sua esperança. Ele não envelheceu na alma, mas confiou como um jovem cheio de força. Kierkegaard afirma que não envelhecemos se acreditamos, se temos fé, pois nada será impossível ao que tem fé.
Mas Abraão acreditou e, por isso, se manteve jovem, porque aquele que sempre espera o melhor envelhece na decepção e o que aguarda sempre o pior mais depressa se gasta, mas o que crê conserva eterna juventude.(KIERKEGAARD, 1843, p. 31).
A força desse herói trágico é o que impressiona. Mas a sua prova não se limitou ao fato do tempo, em esperar para contemplar a promessa do filho, agora, enfrentaria a sua maior prova. Sacrificar seu filho que era justamente a concretização da promessa de Deus. É a partir desse momento que encontramos o nosso Herói trágico. O herói trágico é o instrumento de sua própria infelicidade.
Tudo parecia perdido. Um ancião que já tinha enfrentado o tempo e dado prova de sua fé, agora, se vê desafiado a matar uma criança inocente e não somente isso, mas o seu único filho.
O herói trágico se configura justamente por levar o seu infortúnio às últimas consequências. De não fugir do seu propósito. Abraão acreditou e não se omitiu em sua provação. Um dos fatores é saber que sua prova é concernente a sua vida presente e não futura, mas que a provação era para produzir mudanças no presente e não em um futuro teórico. Como coloca Kierkegaard:
Mas Abraão acreditou sem jamais duvidar, acreditou no absurdo. Se tivesse dúvidas, agiria de outro modo, teria mesmo realizado um ato magnífico. Acaso poderia ter feito outra coisa? Dirigir-se-ia à montanha de Morija; partida a lenha, teria acendido a pira, puxado da faca e gritado assim a Deus: Não menosprezes esse meu sacrifício; de todos os meus bens não é este o mais precioso, bem o sei; que significa de fato a vida de um velho em comparação com a do filho da promessa? Mas é melhor do que posso oferecer-te. Faz com que Isaac nunca de tal se aperceba para que a juventude o conforte. Depois enterraria a faca no próprio peito. O mundo tê-lo-ia admirado e nunca o seu nome seria esquecido; mas uma coisa é suscitar justa admiração e outra ser a estrela que guia e salva o angustiado.(KIERKEGAARD, 1843, p. 33).
Abraão não buscou mudar a vontade de Deus. Ele não se utilizou de nenhuma estratégia, mas simplesmente acreditou em Deus. Respondeu ao chamado de Deus seguindo o caminho que lhe fora colocado.
A luta do herói trágico, aqui com Abraão, tem uma proporção diferente de muitos outros heróis trágicos. Os conhecidos até Abraão tinham as suas ações vistas como forma de mudanças externas, ou seja, um caminho de admiração, realizações, glórias, honras…, a exemplo do Rei grego, Agamenon, que sacrifica sua própria filha para conseguir navegar com o seu exército para travar uma guerra cheia de vaidades e egoísmos. Uma busca de conquistas e realizações que são grandes aos olhos dos homens.
A ideia de sacrificar para conquistar seus objetivos, obter os favores dos deuses em seus intentos e ambições é que se tem, até então, nas narrativas de heróis trágicos na história. Mas com Abraão não se tem a informação de que o sacrifício seria o caminho para conquistar e dominar outros povos. Nem tão pouco para produzir admiração de um povo. Não foi para mudar as coisas externas e, sim, para trazer uma total mudança interna no indivíduo.
O que deve ser visto na história de Abraão é a angústia. Como uma faca de dois gumes, que de um lado mata, mas da outra salva. “Porque amar a Deus sem fé é refletir-se sobre si mesmo, mas amar a Deus com fé é refletir-se no próprio Deus” (KIERKEGAARD, 1843, p. 47). A possibilidade de tocar o infinito. Ir além de onde outros foram é visto pelo autor como um caminho que passa pela angústia.
O autor nos mostra a grande diferença de Abraão para os demais heróis trágicos. Enquanto neles o trágico se torna em benefícios externos, com Abraão não existe este prêmio da admiração e glórias externas, mas apenas uma angústia e sofrimento interno que o leva ao absurdo, como se saindo de si fosse ao infinito e voltasse. Perde-se a noção da realidade por ir além dos parâmetros humanos de ética e moralidade para alcançar seus objetivos da fé.
A angústia enfrentada, ao encarar a Deus, o faz voltar desse embate transformado no seu mais íntimo do ser. Tudo vai ser diferente, não tem como enfrentar tudo isso e ser a mesma pessoa. Quando retorna com Isaac ele retorna um novo pai, um novo marido, um novo senhor… Teve uma grande mudança interna. E, aqui, está o grande prêmio. O homem de fé vai além dos moldes humanos. Estão acima das paixões; acima da moralidade e conceitos éticos das verdades assim declaradas.
Fé para Kierkegaard é inerente à subjetividade e constitui a sua maior paixão; e é somente tornando-se subjetivo que a importância do cristianismo pode ser compreendida e apropriada de modo que constitua uma realidade para o cristão. Onde existe segurança ou certeza objetiva, não pode haver risco, e onde não há possibilidade de risco não pode haver fé. O Cristianismo é por excelência o grande Paradoxo que exige uma fé que é um absurdo para a compreensão (MORAES, 2002, p. 117).
São tidos pelo autor como os únicos que são realmente livres - os homens de fé!
2.1 Suspensão teleológica da moralidade
A moralidade em seu sentido pleno está no geral do comportamento humano. Para atingi-lo o indivíduo deve despojar-se do seu caráter individual para alcançar a generalidade. Mas, surge justamente neste ponto a apresentação de Kierkegaard que o indivíduo de fé está acima do geral. Podendo hora estar no geral e hora acima do geral dependendo das circunstâncias que demanda-se a prática de sua fé.
A história de Abraão é um exemplo de suspensão teleológica da moralidade. Ainda que apresentem vários outros exemplos na história e que digam que se trate do mesmo tipo de herói trágico, veremos as diferenças destacadas por Kierkegaard. Abraão representa a fé e uma vida de fé impossível de ser imaginada.
Do ponto de vista moral, a situação de Abraão para com Isaac simplifica-se, dizendo que o pai deve amar o seu filho mais do que a si próprio. No entanto, a moralidade comporta-se dentro da sua esfera diversos graus; trata-se de saber se encontramos nessa história uma expressão superior da moralidade capaz de explicar, moralmente, a conduta de Abraão e de o autorizar moralmente a suspender o seu dever moral para com o filho sem, no entanto, sair da teleologia deste domínio(KIERKEGAARD, 1843, p. 48).
Quando olhamos para a história de Agamemnon, rei de Micenas, líder dos gregos na guerra de Tróia, uma figura central no poema épico de Ilíada de Homero, a história conta que diante de uma afronta, que na verdade escondia uma ganância de conquistar ainda mais territórios, os gregos saem à guerra, mas uma situação os impede. Não há vento para navegar até Tróia. Aguardavam, mas nada mudava essa realidade, até que surge a solução por meio do “sacrifício de uma criança''. Agamemnon, herói trágico, aceita o sacrifício e mata sua própria filha para ter o favor dos deuses.
A diferença desse herói trágico para Abraão salta aos olhos.
Primeiro, como já mencionado, o herói trágico da mitologia é cercado de glória pelo infortúnio vivido. O sacrifício a ser executado é presenciado e é sabido por todo o exército. A dor a ser vivida causa admiração aos demais pela coragem e devoção à causa. Quem do exército não veria em sua dor um comprometimento com o reino? Um sacrifício que traz a admiração externa. O prêmio para enfrentar tal provação.
Mas, também, podemos retratar o fato de ser um sacrifício para a realização de um desejo, que aqui seria conseguir navegar até Tróia para dominá-la. Verifique que este herói trágico, de certa forma, vê vantagens em fazer o sacrifício, bem como, o discurso de defender a honra que foi violada pelo inimigo. Tal ato não poderia passar impune, pois demonstraria fraqueza. Os seus valores morais permanecem e, não somente isso, mas são o motivador a levá-lo a ter a coragem de sacrificar a própria filha. A manutenção da defesa da moral levada às últimas consequências para promover o bem geral.
Por um lado sua fidelidade ao exército de guerreiros que ele comandava e, por outro lado, a defesa de sua honra manchada pelos adversários. Mas também podemos destacar a glória a ser retratada por toda a eternidade de sua coragem em sacrificar sua própria filha pelo bem comum. Veja que toda sua motivação está encharcada de preceitos morais valorizados por um conjunto ético da sociedade.
Nesse ponto, Kierkegaard nos mostra que com Abraão não verificamos a mesma realidade. A sua atitude de sacrificar o filho é somente por obediência a Deus. Ele não vê vantagens e muito menos o reconhecimento das pessoas pelo que iria fazer. A caminhada até o sacrifício é em total segredo, somente ele e Deus sabiam quem seria sacrificado.
Abraão não compartilha com Sara, sua esposa, o que ia fazer. O mesmo também faz com os seus servos que o acompanha até o local do sacrifício e muito menos a criança, Isaac, sabe. O seu caminho é de total solidão e profunda angústia.
Uma viagem de três dias que o leva no mais íntimo do seu ser em total solidão. Três dias que deve ter durado uma eternidade. A angústia é o seu alimento diário. Acorda e dorme com esse sentimento na alma.
Ele não tem o apoio e a compreensão de ninguém, até por que quem o compreenderia? É uma jornada individual, solitária, ou seja, somente o indivíduo e Deus. Uma caminhada longa, profunda e pesada. Mas toda ela foi em total angústia. Ninguém sabia. Não tinha a admiração de ninguém. Somente uma obrigação e fé - crer que Deus proverá.
Porque eu gostaria de saber como se pode reconduzir a sua ação ao geral, e se é possível descobrir, entre a conduta dele e o geral, uma outra relação além da de ter ultrapassado. Não age para salvar um povo, nem para defender a ideia do Estado, nem sequer para apaziguar os deuses irritados. Se pudéssemos evocar a ira da divindade, essa cólera teria unicamente por objeto Abraão, cuja conduta é assunto estritamente privado, estranho ao geral. Assim, enquanto o herói é grande pela sua virtude moral, Abraão é-o por uma virtude estritamente pessoal (KIERKEGAARD, 1843, p. 72).
Uma outra interpretação destes fatos da vida de Abraão é uma ideia apresentada que Abraão aceitou o desafio de sacrificar o primogênito por ter clareza que Deus estava exigindo o primogênito por causa dos pecados da família(KELLER, 2010, p. 29).
Se caminharmos por essa interpretação teremos um herói trágico como os demais, ou seja, sacrifica por um benefício, que aqui seria o perdão dos pecados da família. Mas, sendo isso, porque não informou os demais sobre o que iria fazer? Traria admiração e respeito conforme os demais heróis trágicos mencionados. Não eliminaria a dor do sacrifício, mas traria um sentimento de estar fazendo a coisa certa e melhor para todos. Porém, nada disso se vê. Ele não faz menção ao fato de ser pelos pecados e nem tão pouco compartilha com alguém o que iria fazer. Era uma jornada individual no absurdo. Encarar a Deus e confiar em suas provisões.
O primeiro continua na esfera da moral. Já Abraão dá um salto conhecido como salto da fé. Ou poderia ser visto por todos como uma fé no absurdo.
Quando Agamemnon, Jefté, Brutus, no instante decisivo, dominam heroicamente a dor, quando, perdido o objeto de seu afeto, apenas lhes resta cumprir o sacrifício exterior, pode porventura existir no mundo alguma nobre alma que não verta lágrimas de compaixão pelo seu infortúnio e de admiração pela sua façanha? Mas, se no preciso momento em que devem mostrar o seu heroísmo com que suportam a tristeza, esses três homens deixassem cair esta simples frase: isto não sucederá - quem os compreenderia então? E se acrescentassem como elucidação: nós assim cremos porque é absurdo, quem mais os compreenderia? Porque se o absurdo dá sua explicação é fácil de entender já assim não sucede quanto à fé no absurdo(KIERKEGAARD, 1843, p. 48).
Verificamos que a teleologia da moralidade não se aplica a Abraão nesta história do herói trágico. Sua caminhada sai do geral para o individual. A provação de Abraão é justamente a moralidade. Veja que dilema a ser enfrentado, pois geralmente as tentações ou provações são para desviar o homem do seu dever, mas como olhar para esta história? “A tentação é a moral”. Dar esse salto da fé, pulando os parâmetros da moralidade, é para Abraão uma prova de amor a Deus. De permanecer debaixo de sua vontade mesmo em atitude contrária ao geral.
Mas que quer dizer uma tentação? Geralmente pretende desviar ao homem do dever; mas aqui a tentação é a moral, ciosa de impedir Abraão de realizar a vontade de Deus. Que é, então, o dever? A expressão da vontade de Deus (KIERKEGAARD, 1843, p. 72).
Onde para muitos a moral é o divino e a sua prática é buscada por todos, como podemos qualificar Abraão frente ao seu comportamento? A moral não foi um limite para sua história. A sua motivação não é ser moralmente irrepreensível, mas obediente a Deus. A história de Abraão nos leva a um ponto em que a razão não explica, pois a prática moral é fruto dela, mas e agora, como podemos explicar a suspensão teleológica da moral em Abraão? É justamente aqui que Kierkegaard afirma que a fé começa onde a razão para.
O silêncio de Abraão durante toda a sua prova é justamente pelo fato de que se ele fala se torna geral, pois suscitaria as conclusões de todos afirmando estar em uma dúvida religiosa e se calando ninguém o entende.
O herói trágico, favorito da ética, é o homem puro; também posso compreendê-lo e tudo o que ele faz passa-se em plena claridade. Se vou mais longe tropeço sempre com o paradoxo, quer dizer, com o divino e o demoníaco porque o silêncio é um e outro. O silêncio é a armadilha do demônio; quanto mais ele é mantido mais o demônio é terrivel; mas o silêncio é também um estádio em que o indivíduo toma consciência da sua união com a divindade (KIERKEGAARD, 1843, p. 101)
Qual o sentido do que faz? Não encontram uma razão para tal prova. Nada faz sentido. Um caminho ininteligível. O sentido de tudo só aparece quando passamos a vê-lo como um homem de fé acima de todos os padrões morais.
Kierkegaard mostra que o herói trágico da Bíblia é o que sai do geral para a particularidade. A sua existência é uma oposição ao geral, ou seja, existe algo a mais do que pensamos e que faz parte do amadurecimento do homem. Sua experiência pessoal é transformadora e significativa em sua vida, no entanto, não por saber o desfecho que ele segue o caminho. O caminho do herói não é iniciado por aquilo que vai conquistar e sim, por um dever de fidelidade a Deus. Ele não sabe o resultado do seu caminho. Ele simplesmente começa.
Se o homem que quer agir pretende chegar logo ao resultado, nunca começará nada. O herói ignora se o resultado poderá vir a encher o mundo inteiro de alegria, porque dele toma conhecimento quando o ato atinge a sua realização total. E não é por isso que se tornou um herói; foi-o porque começou (KIERKEGAARD, 1843, p. 76).
O autor nos mostra que o resultado é um desfecho do absurdo, do infinito, do transcendente. O que ele destaca é justamente o processo e não o desfecho de tudo. Somos levados a verificar a angústia do indivíduo, seu comprometimento com o absurdo; e o salto da fé que o personagem dá superando todos os parâmetros da vida no geral para um engrandecimento do individual. Porque não é o que me sucede que me eleva, mas aquilo que faço, destaca Kierkegaard mostrando o valor do processo e não necessariamente o resultado.
O valor que é dado ao resultado faz com que todo o processo vivido em cada momento seja colocado em segundo plano na visão geral. Olhamos e admiramos Abraão por ser tido como o Pai da fé, algo que talvez desejássemos para nós. Como Maria, mãe de Jesus, tida por todos como bendita entre as mulheres, destaca o autor em seu livro. Talvez muitas mulheres desejassem o mesmo título, afinal de contas poderia ser qualquer uma, mas nenhuma delas são capazes de verificar o caminho de angústia que uma mulher, noiva, teve que enfrentar em seu tempo com uma gravidez inexplicável.
Ela teve que viver o processo para então ser tida como bendita entre as mulheres, bem como, Abraão em seu caminho solitário e angustiante.
Quando diz: sou a serva do Senhor, ela é grande e imagino que não deve ser difícil explicar porque razão se tornou mãe de Deus. Não precisa, absolutamente nada, da admiração do mundo, tal como Abraão não necessita de lágrimas, porque nem ela foi uma heroína, nem ele foi um herói. E não se tornaram grandes por terem escapado à tribulação, ao desespero e ao paradoxo, mas precisamente porque sofreram tudo isso. Há grandeza em ouvir dizer ao poeta, quando apresenta o seu herói trágico à admiração dos homens: chorai por ele; merece-o; porque é grandioso merecer a lágrimas dos que são dignos de a derramar; há grandeza em ver o poeta conter a multidão, corrigir os homens e analisá-los um por um para verificar se são dignos de chorar pelo herói, porque as lágrimas dos vulgares chorões profanam o sagrado. Contudo ainda é mais grandioso que o cavaleiro da fé possa dizer ao nobre caráter que quer chorar por ele: não chores por mim, chora antes por ti próprio (KIERKEGAARD, 1843, p. 79).
Kierkegaard se opõe de certa forma, e com as devidas proporções a filosofia de sua época concernente à objetividade da razão. Vejamos, por exemplo, em Kant a ideia de moralidade como fruto exclusivo da razão. Elevando os conceitos a suma importância, trazendo um dever a ser praticado universalmente. Sem a interferência externa, bem como, das paixões que também nos levam a tomar decisões, Kant traz, assim, um termo conhecido como Imperativo Categórico.
Kant aborda a questão de se há alguma coisa cuja existência em si mesma tenha um valor absoluto e que, como fim em si mesmo (fim objetivo), possa ser base de uma lei prática e, assim, de um imperativo categórico. O objeto que possa ocupar esse status de tão extraordinária relevância, é claro, não deve ser usado simplesmente como meio, mas sim, conforme a sua própria condição, como um fim em si mesmo. Kant, nessa ocasião, apresenta aquele que lhe parece o melhor candidato para tanto: “Ora, digo eu: - O homem, e, de maneira geral, todo o ser racional, existe como fim em si mesmo, não só como meio para o uso arbitrário desta ou daquela vontade. Pelo contrário, em todas as suas ações, tanto nas que se dirigem a ele mesmo como nas que se dirigem a outros seres racionais, ele tem sempre de ser considerado simultaneamente como fim”. Kant sustenta que todos os objetos das inclinações têm apenas um valor condicional, visto que, se não existissem as inclinações nem as necessidades que nelas se baseiam, o seu objeto não teria qualquer valor. (WEYNE, 2013, p. 290)
Kant não considera os aspectos da fé aqui apresentados por Kierkegaard. As decisões mais importantes são justamente aquelas para as quais não há informações objetivas, segundo Kierkegaard.
Kierkegaard nos apresenta aos “estádios da existência”. Ele descreve três fases da existência humana que moldam as escolhas humanas em toda a sua vida.
O primeiro estádio foi denominado “estádio estético”. É o estádio onde o indivíduo se encontra influenciado pelas coisas materiais e imediatas da natureza humana. O homem, neste estádio, seria pouco questionador, seria guiado apenas pelo hedonismo. Geralmente são narcisistas e egoístas. O prazer é a sua busca a qualquer preço. É como baseia toda a sua vida.
Mas existem também, os que se estruturam negando as paixões, ou pelo menos, buscando agir em conformidade a uma ética oriunda das concepções racionais de princípios universais. Kant aborda justamente esses aspectos ao tratar que nossas escolhas são permeadas pela razão e paixão.
O conhecimento para Kant é considerado uma síntese, de um concurso entre o material informe que nos chega pelos sentidos e as formas a priori da sensibilidade e do entendimento. A tese desenvolvida por Kant enfraquece as pretensões da metafísica especulativa de justificar proposições, que são fundamentais à religião cristã, como é o caso, por exemplo, das que dizem respeito à existência e à natureza de Deus (MORAES, 2002, p. 110)
Porém, sua defesa do imperativo categórico é fruto apenas das concepções livres das paixões, sendo exclusivamente fruto da razão, ele não considera, assim, os comportamentos oriundos da fé.
O estádio ético aprofunda a consciência do conflito entre o real e o universal, ou seja, aquilo que se exige de todos sem exceção e a interioridade da subjetividade.
E, por último, o “estádio religioso” seria, para Kierkegaard, a fase culminante da existência humana, a mais elevada forma de vida. Nesta fase, existe a possibilidade de se resolver os conflitos do Indivíduo, pois há uma ampliação dos questionamentos usando a fé como base. Porém, paradoxalmente, é também nesta fase que se dá a máxima da angústia, pois o homem percebe que sua própria fé pode ser questionada. Dentro desta perspectiva, é que encontramos em Kierkegaard, na transição do estádio anterior para o estádio religioso o que chamamos de salto (e não de uma reflexão) e que não traz garantias de êxito em termos humanos. Este salto revela ao Ser Humano suas dimensões eternas e finitas paralelamente.
Kierkegaard traz justamente essa colocação de que diante dessas esferas da moralidade o homem pode ser guiado pelas paixões, pela ética e pela fé. Essa é para ele, sem dúvida alguma, a que expressa a sua obrigação de cumprir um dever como obediência a Deus. Está acima de suas paixões e conceitos éticos morais. O limite do homem de fé está somente em Deus. Suas paixões e todos os tratados morais de uma comunidade não são possíveis de limitar as suas ações. Ele supera todas elas em virtude de sua fé em um ação que transcende todos os outros parâmetros.
Kierkegaard chega a afirmar que o homem verdadeiramente livre é o que pode romper com todos os outros parâmetros de comportamento. A pessoa verdadeiramente livre é o homem de fé. As suas ações não demandam de seus próprios desejos e muito menos do que as pessoas possam pensar dele. Não se guia por paixões e nem por princípios universais. O seu “imperativo Categórico” é a sua fé. “Liberdade, portanto, é uma relação, é a realização da síntese quando corretamente estabelecida. É nesse sentido que tornar-se indivíduo é tornar-se livre”(ROOS, 2021, p. 108)
O paradoxo do Deus que se torna humano é tido como o paradigma da síntese corretamente realizada. É a relação perfeita entre o Infinito e o Finito, destacando que é o infinito que se oferece ao finito e não uma conquista do finito em alcançar o infinito pelas suas análises racionais. As ideias de tornar-se indivíduo e tornar-se livre coincidem justamente pela correta relação dessa síntese. Aqui o homem se torna um indivíduo em sua individualidade livre para fazer as suas escolhas.
Considerações finais
As decisões mais importantes são justamente aquelas para as quais não há informações objetivas ou critérios claros. Kierkegaard faz assim uma caminhada da filosofia para a teologia, para buscar mostrar que o homem, em sua individualidade tem suas subjetividades do ser. Não é tão objetivo como apresentado pela filosofia de seu tempo. Ele considera, então, o valor da fé no processo de conhecimento do homem.
Vimos que o homem nasce um indivíduo, mas precisa no decorrer de sua vida encontrar sua individualidade. As experiências vividas são o caminho para tal. Kierkegaard nos mostrou como devemos superar os preceitos pragmáticos da vida humana e aprender com o processo, independentemente do resultado. É no caminho que nos encontramos conosco mesmo reconhecendo nossa finitude e limitações. Aqui nos angustiamos/desesperamos com a nossa realidade, com a nossa vida e como o nosso ser. E, nesse turbilhão de sentimentos e de aspectos sem sentido que o homem se vê tocado pelo eterno. A sua realidade passa a fazer sentido quando tocado pelo infinito reconhece a finitude do seu ser e o seu propósito de vida. Essa síntese entre o infinito e o finito é o que gera o ambiente de crescimento e amadurecimento do indivíduo.
Vejo este autor como relevante para o nosso tempo, justamente pelo fato de vivermos um tempo onde se fala de pluralidade, mas o que realmente existe é uma visão de mundo pobre de sentidos e valores eternos. Ainda que muitos possam dizer que vivemos em uma sociedade plural é fácil verificar que essa pluralidade é puramente estética e quando não, de valores conduzidos por manipulações dos meios de comunicação em massa. As pessoas podem até parecerem diferentes externamente, mas a sua visão de mundo e seus valores estão, em quase todos, ancorados nesses padrões estabelecidos pelo mercado estético e análises objetivas da existência humana.
Kierkegaard nos mostra no herói trágico, Abraão, o valor da individualidade. Valores que surgem não de uma busca por alcançar os padrões de seu tempo, ou teorias objetivas de afirmações filosóficas, mas da maravilha de ter um sentido de vida que o faz olhar além de si mesmo e do seu próprio contexto, para enxergar aquilo que só faz sentido em sua individualidade, no exercício de sua fé. Como poderia se dizer: Loucura para os homens, mas para o indivíduo de fé é o poder de Deus.
Assim, em seu livro Temor e tremor, Kierkegaard mostra que o homem livre é o que em sua individualidade encontra a sua finitude (que o angustia e, ou, desespera) e nessa realidade de sua existência se revela a ele o infinito. É justamente nessa relação do infinito com o finito que somos livres de nossas angústias e desesperos, para uma existência única e com um sentido eterno. O indivíduo se torna o cavaleiro da fé. O homem verdadeiramente livre.
Bibliografia:
A BÍBLIA SAGRADA - Traduzida em português por João Ferreira de Almeida. Revista e atualizada no Brasil. 2ª Ed. Barueri - SP: Sociedade Bíblica do Brasil, 1999;
KELLER, Timothy. Deuses falsos: eles prometem sexo, poder e dinheiro, mas é disso que você precisa? - Rio de janeiro Ed Thomas Nelson Brasil, 2010;
KIERKEGAARD, Soren Aabye. Temor e tremor - 1ª edição LeBooks Editora. edição digital;
MORAES, Gerson Leite de. O salto da Fé em Kierkegaard. Phrónesis, Campinas, v.4, nº 1, p. 107-122, Jan/Jun, 2002.
ROOS, Jonas. 10 Lições sobre Kierkegaard. Petrópolis: Vozes, 2021.(Edição digital)
WEYNE, Bruno Cunha. O princípio da dignidade humana: reflexões a partir da filosofia de Kant, 1º edição Editora Saraiva, 2013;
Uma sociedade pragmática e voltada para resultados têm gerado indivíduos vazios e sem personalidades. Preocupados com o resultado não aprendem com o processo, justamente o que buscaremos ver neste artigo. O processo como o grande lugar de transformações individuais e não o resultado em si.
Sobre o autor podemos apontar quatro acontecimentos em sua vida que foram relevantes na construção do seu pensamento: a influência de seu pai; seu noivado; sua polêmica com o jornal O Corsário; e sua polêmica com a Igreja oficial da Dinamarca segundo nos apresenta Jonas Roos em seu livro Dez lições sobre Kierkegaard.
Soren Aabye Kierkegaard nasceu em 5 de maio de 1813, em Copenhague, filho de Michael Pedersen Kierkegaard (1756-1838) e Anne Sorensdatter Kierkegaard, nascida Lund (1768-1834). Michael Kierkegaard havia sido casado anteriormente, e sua primeira esposa, Kirstine Royen, falecera depois de dois anos de casamento, sem ter tido filhos. Anne havia sido empregada da família durante este período. Cerca de um ano depois do falecimento de Kirstine, Michel e Anne se casam, com ela já grávida da primeira filha, Maren Kiestine, que nasce cerca de quatro meses e meio depois do casamento. Essa situação fez com que Michel se sentisse inicialmente obrigado a casar com Anne, mas, com o passar do tempo, uma relação afetuosa se desenvolveu entre o casal, que teve sete filhos, dos quais o último foi Soren. (ROOS, 2021, p. 13) Dentro deste contexto o nosso autor cresce e vem a se tornar o Pai do Existencialismo, como ficou conhecido por dar importância a individualidade em suas peculiaridades.
A humanidade buscou por vários meios criar certezas absolutas para nortear a existência humana a partir de verdades declaradas. O sentido da vida e sua objetividade sendo tratada de forma generalista, eliminando os possíveis pensamentos individuais e até subjetivos, tornando tudo comum e geral. Kierkegaard vai justamente questionar esses conceitos gerais e afirmar que o ser humano precisa encontrar a verdade individual pela qual deva “viver e morrer”. É justamente no contraponto do pensamento hegeliano de um saber objetivo em um conceito geral de seu tempo onde a razão tudo explica. Tal pensamento é para Kierkegaard uma tentativa pagã de ser a palavra final de toda realidade da prática da fé cristã.
O espírito que inicialmente se externava na forma de um campo natural inconsciente poderia alcançar uma efetivação gradual de seu caráter fundamental por meio da consciência em desenvolvimento nos seres humanos. No nível reflexivo, tal pensamento produziria um mundo como produto de um intelecto cuja estrutura subjacente era espelhada em nosso processo de pensar (...) A realidade não seria mais estranha aos seres humanos e o espírito teria uma compreensão e satifatória de si mesmo (MORAES, 2002, p. 113).
Kierkegaard busca construir em seus escritos o caminho da individualidade humana. Mesmo que o homem nasça um indivíduo ele deve produzir a sua própria individualidade.“Uma marca de sua obra é a ideia de que uma pessoa não nasce um indivíduo, mas deve produzir a própria individualidade, deve tornar-se a si mesmo”(ROOS, 2021, p. 10).
A experiência de vida produz a individualidade humana. Com a defesa dos valores gerais de uma comunidade reprimimos os valores individuais com um discurso de proteção da comunidade ou de uma verdade racional universal. Com isso, o amadurecimento individual se perde em uma prática de valores e experiências gerais que não toca o indivíduo em sua essência. Seguimos parâmetros e os defendemos sem nem sequer vivê-los e conquistá-los nas angústias da existência. Onde muitos podem dizer – só sei que é assim.
Kierkegaard busca despertar a importância das experiências individuais que produzem maturidade não em um conjunto de pessoas, mas em cada indivíduo particularmente. É a maravilha da vida de ser uma e única em cada indivíduo. A partir das experiências pessoais encontramos um agir que o torna significativo.
É por isso que o problema que Kierkegaard tem com a cristandade não é um problema com a Igreja ou com a cultura dinamarquesa apenas, mas um problema que atinge o âmago da existência humana, ou seja, como tornar-se si mesmo face a elementos que tentam determinar o si-mesmo a partir de fora. (ROOS, 2021, p. 27)
A sua proposta não é uma obediência a um Deus impositivo, bem como, a um compêndio de doutrinas, mas deve ser uma escolha livre de normas e regras estabelecidas com o tempo. Uma clareza de sua finitude, sua temporalidade, seu corpo, sua história permeada pela ação do Eterno que transcende toda a nossa existência. É o infinito no finito. Não passa por uma escolha derivada de forças externas do convívio humano, mas algo que se move no mais íntimo do ser produzindo escolhas e mudanças radicais em si mesmo.
O ser humano é entendido por Kierkegaard como uma síntese de infinitude e de finitude, do temporal e do eterno, de liberdade e necessidade. Vivemos na finitude e em suas determinações, mas ao mesmo tempo, nutrimos sonhos, esperanças e sentidos da ordem da infinitude. O desespero é exatamente a má relação dessa síntese que nos constitui, e, consequentemente, uma perda de nós mesmos (ROOS, 2021, p. 39).
É justamente nessa relação do finito com o infinito que o ser humano se torna um indivíduo. Suas escolhas são fruto de experiências que transcendem as normas e prazeres que regem o tempo. Uma liberdade de ir além dos que estão limitados pelas “verdades objetivas” de seu tempo.
O autor nos propõe olhar para a história bíblica de Abraão no episódio da solicitação de Deus em sacrificar seu filho. Buscaremos assim, mostrar nesse personagem o herói trágico diferente das normas estabelecidas pela sociedade. E, assim, mostrar que os seres realmente livres são os que em sua individualidade são capazes de tomarem decisões sem influências externas.
2. O HERÓI TRÁGICO
O valor transformador na vida do nosso autor é significativo. Quantas inquietações e dúvidas surgiram diante da história, muitas vezes contada, de um pai que sai para sacrificar seu próprio filho e vive uma forte experiência. A história bíblica de Abraão e Isaac, criou nele um grande desejo de entender os sentimentos e as motivações de Abraão vividos nos três dias de caminhada até ao local do sacrifício.
Deus pôs Abraão à prova e lhe disse: Abraão! Este lhe respondeu: Eis-me aqui! Acrescentou Deus: Toma teu filho, teu único filho, Isaque, a quem amas, e vai-te à terra de Moriá; oferece-o ali em holocausto, sobre um dos montes, que eu te mostrarei. (Gênesis 22.1-2, Bíblia Sagrada)
Kierkegaard aborda em seu livro Temor e Tremor a história de Abraão trazendo a ideia que se a humanidade não fosse permeada por um vínculo sagrado em sua existência o que restaria ao homem seria somente o desespero. A vida seria um mundo em total desespero. O fato de uma continuidade das gerações é tida como uma forma de crescimento em meio a fatos presentes ainda não compreendidos totalmente. Imaginem se na história, tivéssemos que reviver, em cada geração, os erros e absurdos cometidos em um ciclo interminável. Imaginem se a dor, a tristeza, a doença e o sofrimento tivessem um fim em si mesmo. Como seria ainda mais pesada a nossa jornada nesta vida se não aprendêssemos com as gerações anteriores.
É aqui que o autor nos chama a pensar nesse vínculo sagrado que se move entre as gerações produzindo sabedoria e maturidade. A história de Abraão nos traz esse sentimento de ver que somos capazes de ir além da moral por um entendimento sagrado, ou seja, seguimos com a fé onde a razão para. Superamos a dor, a perda e os moldes morais para viver algo além da própria razão humana.
Surge, assim, em nossa história os “Heróis Trágicos”. Admirados por todos ou em grande parte, justamente por suas realizações de coragem motivados pelo que amam, como Kierkegaard frisa: “Porque aquele que se amou a si próprio foi grande pela sua pessoa; quem amou a outrem foi grande dando-se; mas o que amou a Deus foi o maior de todos”. (KIERKEGAARD, 1843, p. 28). Kierkegaard destaca que os homens são lembrados e admirados pelos objetos de suas esperanças, pela importância daquilo pelo que combateram - “um engrandeceu-se na esperança de atingir o possível; um outro das coisas eternas, mas aquele que quis alcançar o impossível foi, de todos, o maior”. (KIERKEGAARD, 1843, p. 29).
Diante de todo o crescimento que a humanidade pode ter das lutas enfrentadas entre homens e entre suas próprias limitações, é colocado que as grandes experiências passam por encarar a Deus. E nisso, Abraão se tornou o maior de todos pelas seguintes nuances: “grande pela energia cuja força é a fraqueza, grande pelo saber cujo segredo é loucura, pela esperança cuja forma é a demência, pelo amor que é ódio a si próprio”. (KIERKEGAARD, 1843, p. 29).
Veremos neste tópico a forma e a importância de um propósito que direcione todas as nossas escolhas. Buscaremos apontar o caminho apresentado pelo autor sobre o Herói trágico, verificado na história em vários momentos, mas aqui, será pela história bíblica de Abraão.
Partimos de um conceito fundamental em Kierkegaard que é a fé. Para ele não precisamos saber exatamente o que fazer, e sim, o que é preciso fazer.
O que eu realmente preciso é ter clareza sobre o que devo fazer e não o que eu preciso saber, a não ser na medida em que o conhecimento deva preceder cada movimento. O que importa é encontrar um propósito, para ver o que realmente é que Deus quer que eu faça; o mais importante é encontrar uma verdade para mim, encontrar a ideia pela qual estou disposto a viver e morrer.(KIERKEGAARD, 1843, p. 12).
O sentido para viver é que dá toda a motivação para seguir um caminho.
Abraão obteve uma promessa de ser uma grande nação e que todas as nações seriam abençoadas por meio de sua família. Mas o tempo foi passando e a cada novo dia parecia tudo mais absurdo e impossível, mas ele creu. Manteve a sua esperança. Confiou mesmo diante do tempo que avançava e, com isso, suas possibilidades de se tornar uma grande nação iam diminuindo, porém, nada disso foi suficiente para pôr fim à sua esperança. Ele não envelheceu na alma, mas confiou como um jovem cheio de força. Kierkegaard afirma que não envelhecemos se acreditamos, se temos fé, pois nada será impossível ao que tem fé.
Mas Abraão acreditou e, por isso, se manteve jovem, porque aquele que sempre espera o melhor envelhece na decepção e o que aguarda sempre o pior mais depressa se gasta, mas o que crê conserva eterna juventude.(KIERKEGAARD, 1843, p. 31).
A força desse herói trágico é o que impressiona. Mas a sua prova não se limitou ao fato do tempo, em esperar para contemplar a promessa do filho, agora, enfrentaria a sua maior prova. Sacrificar seu filho que era justamente a concretização da promessa de Deus. É a partir desse momento que encontramos o nosso Herói trágico. O herói trágico é o instrumento de sua própria infelicidade.
Tudo parecia perdido. Um ancião que já tinha enfrentado o tempo e dado prova de sua fé, agora, se vê desafiado a matar uma criança inocente e não somente isso, mas o seu único filho.
O herói trágico se configura justamente por levar o seu infortúnio às últimas consequências. De não fugir do seu propósito. Abraão acreditou e não se omitiu em sua provação. Um dos fatores é saber que sua prova é concernente a sua vida presente e não futura, mas que a provação era para produzir mudanças no presente e não em um futuro teórico. Como coloca Kierkegaard:
Mas Abraão acreditou sem jamais duvidar, acreditou no absurdo. Se tivesse dúvidas, agiria de outro modo, teria mesmo realizado um ato magnífico. Acaso poderia ter feito outra coisa? Dirigir-se-ia à montanha de Morija; partida a lenha, teria acendido a pira, puxado da faca e gritado assim a Deus: Não menosprezes esse meu sacrifício; de todos os meus bens não é este o mais precioso, bem o sei; que significa de fato a vida de um velho em comparação com a do filho da promessa? Mas é melhor do que posso oferecer-te. Faz com que Isaac nunca de tal se aperceba para que a juventude o conforte. Depois enterraria a faca no próprio peito. O mundo tê-lo-ia admirado e nunca o seu nome seria esquecido; mas uma coisa é suscitar justa admiração e outra ser a estrela que guia e salva o angustiado.(KIERKEGAARD, 1843, p. 33).
Abraão não buscou mudar a vontade de Deus. Ele não se utilizou de nenhuma estratégia, mas simplesmente acreditou em Deus. Respondeu ao chamado de Deus seguindo o caminho que lhe fora colocado.
A luta do herói trágico, aqui com Abraão, tem uma proporção diferente de muitos outros heróis trágicos. Os conhecidos até Abraão tinham as suas ações vistas como forma de mudanças externas, ou seja, um caminho de admiração, realizações, glórias, honras…, a exemplo do Rei grego, Agamenon, que sacrifica sua própria filha para conseguir navegar com o seu exército para travar uma guerra cheia de vaidades e egoísmos. Uma busca de conquistas e realizações que são grandes aos olhos dos homens.
A ideia de sacrificar para conquistar seus objetivos, obter os favores dos deuses em seus intentos e ambições é que se tem, até então, nas narrativas de heróis trágicos na história. Mas com Abraão não se tem a informação de que o sacrifício seria o caminho para conquistar e dominar outros povos. Nem tão pouco para produzir admiração de um povo. Não foi para mudar as coisas externas e, sim, para trazer uma total mudança interna no indivíduo.
O que deve ser visto na história de Abraão é a angústia. Como uma faca de dois gumes, que de um lado mata, mas da outra salva. “Porque amar a Deus sem fé é refletir-se sobre si mesmo, mas amar a Deus com fé é refletir-se no próprio Deus” (KIERKEGAARD, 1843, p. 47). A possibilidade de tocar o infinito. Ir além de onde outros foram é visto pelo autor como um caminho que passa pela angústia.
O autor nos mostra a grande diferença de Abraão para os demais heróis trágicos. Enquanto neles o trágico se torna em benefícios externos, com Abraão não existe este prêmio da admiração e glórias externas, mas apenas uma angústia e sofrimento interno que o leva ao absurdo, como se saindo de si fosse ao infinito e voltasse. Perde-se a noção da realidade por ir além dos parâmetros humanos de ética e moralidade para alcançar seus objetivos da fé.
A angústia enfrentada, ao encarar a Deus, o faz voltar desse embate transformado no seu mais íntimo do ser. Tudo vai ser diferente, não tem como enfrentar tudo isso e ser a mesma pessoa. Quando retorna com Isaac ele retorna um novo pai, um novo marido, um novo senhor… Teve uma grande mudança interna. E, aqui, está o grande prêmio. O homem de fé vai além dos moldes humanos. Estão acima das paixões; acima da moralidade e conceitos éticos das verdades assim declaradas.
Fé para Kierkegaard é inerente à subjetividade e constitui a sua maior paixão; e é somente tornando-se subjetivo que a importância do cristianismo pode ser compreendida e apropriada de modo que constitua uma realidade para o cristão. Onde existe segurança ou certeza objetiva, não pode haver risco, e onde não há possibilidade de risco não pode haver fé. O Cristianismo é por excelência o grande Paradoxo que exige uma fé que é um absurdo para a compreensão (MORAES, 2002, p. 117).
São tidos pelo autor como os únicos que são realmente livres - os homens de fé!
2.1 Suspensão teleológica da moralidade
A moralidade em seu sentido pleno está no geral do comportamento humano. Para atingi-lo o indivíduo deve despojar-se do seu caráter individual para alcançar a generalidade. Mas, surge justamente neste ponto a apresentação de Kierkegaard que o indivíduo de fé está acima do geral. Podendo hora estar no geral e hora acima do geral dependendo das circunstâncias que demanda-se a prática de sua fé.
A história de Abraão é um exemplo de suspensão teleológica da moralidade. Ainda que apresentem vários outros exemplos na história e que digam que se trate do mesmo tipo de herói trágico, veremos as diferenças destacadas por Kierkegaard. Abraão representa a fé e uma vida de fé impossível de ser imaginada.
Do ponto de vista moral, a situação de Abraão para com Isaac simplifica-se, dizendo que o pai deve amar o seu filho mais do que a si próprio. No entanto, a moralidade comporta-se dentro da sua esfera diversos graus; trata-se de saber se encontramos nessa história uma expressão superior da moralidade capaz de explicar, moralmente, a conduta de Abraão e de o autorizar moralmente a suspender o seu dever moral para com o filho sem, no entanto, sair da teleologia deste domínio(KIERKEGAARD, 1843, p. 48).
Quando olhamos para a história de Agamemnon, rei de Micenas, líder dos gregos na guerra de Tróia, uma figura central no poema épico de Ilíada de Homero, a história conta que diante de uma afronta, que na verdade escondia uma ganância de conquistar ainda mais territórios, os gregos saem à guerra, mas uma situação os impede. Não há vento para navegar até Tróia. Aguardavam, mas nada mudava essa realidade, até que surge a solução por meio do “sacrifício de uma criança''. Agamemnon, herói trágico, aceita o sacrifício e mata sua própria filha para ter o favor dos deuses.
A diferença desse herói trágico para Abraão salta aos olhos.
Primeiro, como já mencionado, o herói trágico da mitologia é cercado de glória pelo infortúnio vivido. O sacrifício a ser executado é presenciado e é sabido por todo o exército. A dor a ser vivida causa admiração aos demais pela coragem e devoção à causa. Quem do exército não veria em sua dor um comprometimento com o reino? Um sacrifício que traz a admiração externa. O prêmio para enfrentar tal provação.
Mas, também, podemos retratar o fato de ser um sacrifício para a realização de um desejo, que aqui seria conseguir navegar até Tróia para dominá-la. Verifique que este herói trágico, de certa forma, vê vantagens em fazer o sacrifício, bem como, o discurso de defender a honra que foi violada pelo inimigo. Tal ato não poderia passar impune, pois demonstraria fraqueza. Os seus valores morais permanecem e, não somente isso, mas são o motivador a levá-lo a ter a coragem de sacrificar a própria filha. A manutenção da defesa da moral levada às últimas consequências para promover o bem geral.
Por um lado sua fidelidade ao exército de guerreiros que ele comandava e, por outro lado, a defesa de sua honra manchada pelos adversários. Mas também podemos destacar a glória a ser retratada por toda a eternidade de sua coragem em sacrificar sua própria filha pelo bem comum. Veja que toda sua motivação está encharcada de preceitos morais valorizados por um conjunto ético da sociedade.
Nesse ponto, Kierkegaard nos mostra que com Abraão não verificamos a mesma realidade. A sua atitude de sacrificar o filho é somente por obediência a Deus. Ele não vê vantagens e muito menos o reconhecimento das pessoas pelo que iria fazer. A caminhada até o sacrifício é em total segredo, somente ele e Deus sabiam quem seria sacrificado.
Abraão não compartilha com Sara, sua esposa, o que ia fazer. O mesmo também faz com os seus servos que o acompanha até o local do sacrifício e muito menos a criança, Isaac, sabe. O seu caminho é de total solidão e profunda angústia.
Uma viagem de três dias que o leva no mais íntimo do seu ser em total solidão. Três dias que deve ter durado uma eternidade. A angústia é o seu alimento diário. Acorda e dorme com esse sentimento na alma.
Ele não tem o apoio e a compreensão de ninguém, até por que quem o compreenderia? É uma jornada individual, solitária, ou seja, somente o indivíduo e Deus. Uma caminhada longa, profunda e pesada. Mas toda ela foi em total angústia. Ninguém sabia. Não tinha a admiração de ninguém. Somente uma obrigação e fé - crer que Deus proverá.
Porque eu gostaria de saber como se pode reconduzir a sua ação ao geral, e se é possível descobrir, entre a conduta dele e o geral, uma outra relação além da de ter ultrapassado. Não age para salvar um povo, nem para defender a ideia do Estado, nem sequer para apaziguar os deuses irritados. Se pudéssemos evocar a ira da divindade, essa cólera teria unicamente por objeto Abraão, cuja conduta é assunto estritamente privado, estranho ao geral. Assim, enquanto o herói é grande pela sua virtude moral, Abraão é-o por uma virtude estritamente pessoal (KIERKEGAARD, 1843, p. 72).
Uma outra interpretação destes fatos da vida de Abraão é uma ideia apresentada que Abraão aceitou o desafio de sacrificar o primogênito por ter clareza que Deus estava exigindo o primogênito por causa dos pecados da família(KELLER, 2010, p. 29).
Se caminharmos por essa interpretação teremos um herói trágico como os demais, ou seja, sacrifica por um benefício, que aqui seria o perdão dos pecados da família. Mas, sendo isso, porque não informou os demais sobre o que iria fazer? Traria admiração e respeito conforme os demais heróis trágicos mencionados. Não eliminaria a dor do sacrifício, mas traria um sentimento de estar fazendo a coisa certa e melhor para todos. Porém, nada disso se vê. Ele não faz menção ao fato de ser pelos pecados e nem tão pouco compartilha com alguém o que iria fazer. Era uma jornada individual no absurdo. Encarar a Deus e confiar em suas provisões.
O primeiro continua na esfera da moral. Já Abraão dá um salto conhecido como salto da fé. Ou poderia ser visto por todos como uma fé no absurdo.
Quando Agamemnon, Jefté, Brutus, no instante decisivo, dominam heroicamente a dor, quando, perdido o objeto de seu afeto, apenas lhes resta cumprir o sacrifício exterior, pode porventura existir no mundo alguma nobre alma que não verta lágrimas de compaixão pelo seu infortúnio e de admiração pela sua façanha? Mas, se no preciso momento em que devem mostrar o seu heroísmo com que suportam a tristeza, esses três homens deixassem cair esta simples frase: isto não sucederá - quem os compreenderia então? E se acrescentassem como elucidação: nós assim cremos porque é absurdo, quem mais os compreenderia? Porque se o absurdo dá sua explicação é fácil de entender já assim não sucede quanto à fé no absurdo(KIERKEGAARD, 1843, p. 48).
Verificamos que a teleologia da moralidade não se aplica a Abraão nesta história do herói trágico. Sua caminhada sai do geral para o individual. A provação de Abraão é justamente a moralidade. Veja que dilema a ser enfrentado, pois geralmente as tentações ou provações são para desviar o homem do seu dever, mas como olhar para esta história? “A tentação é a moral”. Dar esse salto da fé, pulando os parâmetros da moralidade, é para Abraão uma prova de amor a Deus. De permanecer debaixo de sua vontade mesmo em atitude contrária ao geral.
Mas que quer dizer uma tentação? Geralmente pretende desviar ao homem do dever; mas aqui a tentação é a moral, ciosa de impedir Abraão de realizar a vontade de Deus. Que é, então, o dever? A expressão da vontade de Deus (KIERKEGAARD, 1843, p. 72).
Onde para muitos a moral é o divino e a sua prática é buscada por todos, como podemos qualificar Abraão frente ao seu comportamento? A moral não foi um limite para sua história. A sua motivação não é ser moralmente irrepreensível, mas obediente a Deus. A história de Abraão nos leva a um ponto em que a razão não explica, pois a prática moral é fruto dela, mas e agora, como podemos explicar a suspensão teleológica da moral em Abraão? É justamente aqui que Kierkegaard afirma que a fé começa onde a razão para.
O silêncio de Abraão durante toda a sua prova é justamente pelo fato de que se ele fala se torna geral, pois suscitaria as conclusões de todos afirmando estar em uma dúvida religiosa e se calando ninguém o entende.
O herói trágico, favorito da ética, é o homem puro; também posso compreendê-lo e tudo o que ele faz passa-se em plena claridade. Se vou mais longe tropeço sempre com o paradoxo, quer dizer, com o divino e o demoníaco porque o silêncio é um e outro. O silêncio é a armadilha do demônio; quanto mais ele é mantido mais o demônio é terrivel; mas o silêncio é também um estádio em que o indivíduo toma consciência da sua união com a divindade (KIERKEGAARD, 1843, p. 101)
Qual o sentido do que faz? Não encontram uma razão para tal prova. Nada faz sentido. Um caminho ininteligível. O sentido de tudo só aparece quando passamos a vê-lo como um homem de fé acima de todos os padrões morais.
Kierkegaard mostra que o herói trágico da Bíblia é o que sai do geral para a particularidade. A sua existência é uma oposição ao geral, ou seja, existe algo a mais do que pensamos e que faz parte do amadurecimento do homem. Sua experiência pessoal é transformadora e significativa em sua vida, no entanto, não por saber o desfecho que ele segue o caminho. O caminho do herói não é iniciado por aquilo que vai conquistar e sim, por um dever de fidelidade a Deus. Ele não sabe o resultado do seu caminho. Ele simplesmente começa.
Se o homem que quer agir pretende chegar logo ao resultado, nunca começará nada. O herói ignora se o resultado poderá vir a encher o mundo inteiro de alegria, porque dele toma conhecimento quando o ato atinge a sua realização total. E não é por isso que se tornou um herói; foi-o porque começou (KIERKEGAARD, 1843, p. 76).
O autor nos mostra que o resultado é um desfecho do absurdo, do infinito, do transcendente. O que ele destaca é justamente o processo e não o desfecho de tudo. Somos levados a verificar a angústia do indivíduo, seu comprometimento com o absurdo; e o salto da fé que o personagem dá superando todos os parâmetros da vida no geral para um engrandecimento do individual. Porque não é o que me sucede que me eleva, mas aquilo que faço, destaca Kierkegaard mostrando o valor do processo e não necessariamente o resultado.
O valor que é dado ao resultado faz com que todo o processo vivido em cada momento seja colocado em segundo plano na visão geral. Olhamos e admiramos Abraão por ser tido como o Pai da fé, algo que talvez desejássemos para nós. Como Maria, mãe de Jesus, tida por todos como bendita entre as mulheres, destaca o autor em seu livro. Talvez muitas mulheres desejassem o mesmo título, afinal de contas poderia ser qualquer uma, mas nenhuma delas são capazes de verificar o caminho de angústia que uma mulher, noiva, teve que enfrentar em seu tempo com uma gravidez inexplicável.
Ela teve que viver o processo para então ser tida como bendita entre as mulheres, bem como, Abraão em seu caminho solitário e angustiante.
Quando diz: sou a serva do Senhor, ela é grande e imagino que não deve ser difícil explicar porque razão se tornou mãe de Deus. Não precisa, absolutamente nada, da admiração do mundo, tal como Abraão não necessita de lágrimas, porque nem ela foi uma heroína, nem ele foi um herói. E não se tornaram grandes por terem escapado à tribulação, ao desespero e ao paradoxo, mas precisamente porque sofreram tudo isso. Há grandeza em ouvir dizer ao poeta, quando apresenta o seu herói trágico à admiração dos homens: chorai por ele; merece-o; porque é grandioso merecer a lágrimas dos que são dignos de a derramar; há grandeza em ver o poeta conter a multidão, corrigir os homens e analisá-los um por um para verificar se são dignos de chorar pelo herói, porque as lágrimas dos vulgares chorões profanam o sagrado. Contudo ainda é mais grandioso que o cavaleiro da fé possa dizer ao nobre caráter que quer chorar por ele: não chores por mim, chora antes por ti próprio (KIERKEGAARD, 1843, p. 79).
Kierkegaard se opõe de certa forma, e com as devidas proporções a filosofia de sua época concernente à objetividade da razão. Vejamos, por exemplo, em Kant a ideia de moralidade como fruto exclusivo da razão. Elevando os conceitos a suma importância, trazendo um dever a ser praticado universalmente. Sem a interferência externa, bem como, das paixões que também nos levam a tomar decisões, Kant traz, assim, um termo conhecido como Imperativo Categórico.
Kant aborda a questão de se há alguma coisa cuja existência em si mesma tenha um valor absoluto e que, como fim em si mesmo (fim objetivo), possa ser base de uma lei prática e, assim, de um imperativo categórico. O objeto que possa ocupar esse status de tão extraordinária relevância, é claro, não deve ser usado simplesmente como meio, mas sim, conforme a sua própria condição, como um fim em si mesmo. Kant, nessa ocasião, apresenta aquele que lhe parece o melhor candidato para tanto: “Ora, digo eu: - O homem, e, de maneira geral, todo o ser racional, existe como fim em si mesmo, não só como meio para o uso arbitrário desta ou daquela vontade. Pelo contrário, em todas as suas ações, tanto nas que se dirigem a ele mesmo como nas que se dirigem a outros seres racionais, ele tem sempre de ser considerado simultaneamente como fim”. Kant sustenta que todos os objetos das inclinações têm apenas um valor condicional, visto que, se não existissem as inclinações nem as necessidades que nelas se baseiam, o seu objeto não teria qualquer valor. (WEYNE, 2013, p. 290)
Kant não considera os aspectos da fé aqui apresentados por Kierkegaard. As decisões mais importantes são justamente aquelas para as quais não há informações objetivas, segundo Kierkegaard.
Kierkegaard nos apresenta aos “estádios da existência”. Ele descreve três fases da existência humana que moldam as escolhas humanas em toda a sua vida.
O primeiro estádio foi denominado “estádio estético”. É o estádio onde o indivíduo se encontra influenciado pelas coisas materiais e imediatas da natureza humana. O homem, neste estádio, seria pouco questionador, seria guiado apenas pelo hedonismo. Geralmente são narcisistas e egoístas. O prazer é a sua busca a qualquer preço. É como baseia toda a sua vida.
Mas existem também, os que se estruturam negando as paixões, ou pelo menos, buscando agir em conformidade a uma ética oriunda das concepções racionais de princípios universais. Kant aborda justamente esses aspectos ao tratar que nossas escolhas são permeadas pela razão e paixão.
O conhecimento para Kant é considerado uma síntese, de um concurso entre o material informe que nos chega pelos sentidos e as formas a priori da sensibilidade e do entendimento. A tese desenvolvida por Kant enfraquece as pretensões da metafísica especulativa de justificar proposições, que são fundamentais à religião cristã, como é o caso, por exemplo, das que dizem respeito à existência e à natureza de Deus (MORAES, 2002, p. 110)
Porém, sua defesa do imperativo categórico é fruto apenas das concepções livres das paixões, sendo exclusivamente fruto da razão, ele não considera, assim, os comportamentos oriundos da fé.
O estádio ético aprofunda a consciência do conflito entre o real e o universal, ou seja, aquilo que se exige de todos sem exceção e a interioridade da subjetividade.
E, por último, o “estádio religioso” seria, para Kierkegaard, a fase culminante da existência humana, a mais elevada forma de vida. Nesta fase, existe a possibilidade de se resolver os conflitos do Indivíduo, pois há uma ampliação dos questionamentos usando a fé como base. Porém, paradoxalmente, é também nesta fase que se dá a máxima da angústia, pois o homem percebe que sua própria fé pode ser questionada. Dentro desta perspectiva, é que encontramos em Kierkegaard, na transição do estádio anterior para o estádio religioso o que chamamos de salto (e não de uma reflexão) e que não traz garantias de êxito em termos humanos. Este salto revela ao Ser Humano suas dimensões eternas e finitas paralelamente.
Kierkegaard traz justamente essa colocação de que diante dessas esferas da moralidade o homem pode ser guiado pelas paixões, pela ética e pela fé. Essa é para ele, sem dúvida alguma, a que expressa a sua obrigação de cumprir um dever como obediência a Deus. Está acima de suas paixões e conceitos éticos morais. O limite do homem de fé está somente em Deus. Suas paixões e todos os tratados morais de uma comunidade não são possíveis de limitar as suas ações. Ele supera todas elas em virtude de sua fé em um ação que transcende todos os outros parâmetros.
Kierkegaard chega a afirmar que o homem verdadeiramente livre é o que pode romper com todos os outros parâmetros de comportamento. A pessoa verdadeiramente livre é o homem de fé. As suas ações não demandam de seus próprios desejos e muito menos do que as pessoas possam pensar dele. Não se guia por paixões e nem por princípios universais. O seu “imperativo Categórico” é a sua fé. “Liberdade, portanto, é uma relação, é a realização da síntese quando corretamente estabelecida. É nesse sentido que tornar-se indivíduo é tornar-se livre”(ROOS, 2021, p. 108)
O paradoxo do Deus que se torna humano é tido como o paradigma da síntese corretamente realizada. É a relação perfeita entre o Infinito e o Finito, destacando que é o infinito que se oferece ao finito e não uma conquista do finito em alcançar o infinito pelas suas análises racionais. As ideias de tornar-se indivíduo e tornar-se livre coincidem justamente pela correta relação dessa síntese. Aqui o homem se torna um indivíduo em sua individualidade livre para fazer as suas escolhas.
Considerações finais
As decisões mais importantes são justamente aquelas para as quais não há informações objetivas ou critérios claros. Kierkegaard faz assim uma caminhada da filosofia para a teologia, para buscar mostrar que o homem, em sua individualidade tem suas subjetividades do ser. Não é tão objetivo como apresentado pela filosofia de seu tempo. Ele considera, então, o valor da fé no processo de conhecimento do homem.
Vimos que o homem nasce um indivíduo, mas precisa no decorrer de sua vida encontrar sua individualidade. As experiências vividas são o caminho para tal. Kierkegaard nos mostrou como devemos superar os preceitos pragmáticos da vida humana e aprender com o processo, independentemente do resultado. É no caminho que nos encontramos conosco mesmo reconhecendo nossa finitude e limitações. Aqui nos angustiamos/desesperamos com a nossa realidade, com a nossa vida e como o nosso ser. E, nesse turbilhão de sentimentos e de aspectos sem sentido que o homem se vê tocado pelo eterno. A sua realidade passa a fazer sentido quando tocado pelo infinito reconhece a finitude do seu ser e o seu propósito de vida. Essa síntese entre o infinito e o finito é o que gera o ambiente de crescimento e amadurecimento do indivíduo.
Vejo este autor como relevante para o nosso tempo, justamente pelo fato de vivermos um tempo onde se fala de pluralidade, mas o que realmente existe é uma visão de mundo pobre de sentidos e valores eternos. Ainda que muitos possam dizer que vivemos em uma sociedade plural é fácil verificar que essa pluralidade é puramente estética e quando não, de valores conduzidos por manipulações dos meios de comunicação em massa. As pessoas podem até parecerem diferentes externamente, mas a sua visão de mundo e seus valores estão, em quase todos, ancorados nesses padrões estabelecidos pelo mercado estético e análises objetivas da existência humana.
Kierkegaard nos mostra no herói trágico, Abraão, o valor da individualidade. Valores que surgem não de uma busca por alcançar os padrões de seu tempo, ou teorias objetivas de afirmações filosóficas, mas da maravilha de ter um sentido de vida que o faz olhar além de si mesmo e do seu próprio contexto, para enxergar aquilo que só faz sentido em sua individualidade, no exercício de sua fé. Como poderia se dizer: Loucura para os homens, mas para o indivíduo de fé é o poder de Deus.
Assim, em seu livro Temor e tremor, Kierkegaard mostra que o homem livre é o que em sua individualidade encontra a sua finitude (que o angustia e, ou, desespera) e nessa realidade de sua existência se revela a ele o infinito. É justamente nessa relação do infinito com o finito que somos livres de nossas angústias e desesperos, para uma existência única e com um sentido eterno. O indivíduo se torna o cavaleiro da fé. O homem verdadeiramente livre.
Bibliografia:
A BÍBLIA SAGRADA - Traduzida em português por João Ferreira de Almeida. Revista e atualizada no Brasil. 2ª Ed. Barueri - SP: Sociedade Bíblica do Brasil, 1999;
KELLER, Timothy. Deuses falsos: eles prometem sexo, poder e dinheiro, mas é disso que você precisa? - Rio de janeiro Ed Thomas Nelson Brasil, 2010;
KIERKEGAARD, Soren Aabye. Temor e tremor - 1ª edição LeBooks Editora. edição digital;
MORAES, Gerson Leite de. O salto da Fé em Kierkegaard. Phrónesis, Campinas, v.4, nº 1, p. 107-122, Jan/Jun, 2002.
ROOS, Jonas. 10 Lições sobre Kierkegaard. Petrópolis: Vozes, 2021.(Edição digital)
WEYNE, Bruno Cunha. O princípio da dignidade humana: reflexões a partir da filosofia de Kant, 1º edição Editora Saraiva, 2013;